Quem tem medo de responsabilidade emocional?





Relendo um texto de Dalmo de Abreu Dallari — Contextualização Histórica da Educação em Direitos Humanos — , encontrei algum sentido para um dos antagonismos do comportamento humano atual.

Ao mesmo tempo em que é cada vez mais comum encontrar pessoas que estão lidando de maneira exemplar com finais de casamento e relação com os filhos e netos, ocorrem casos como o do menino Sean Goldman

As bizarrices cotidianas coordenadas por adultos que simplesmente se recusam a olhar de fato para os sentimentos das crianças parecem se multiplicar.

A impressão que se tem é que ambas as atitudes aumentam. Tenho tido a felicidade de presenciar de perto exemplos de dignidade louvável, como mulheres traídas que fazem guarda compartilhada, separando o papel de mulher do de mãe.

Uma amiga recentemente disse a seguinte frase: “Como mulher, para uma amiga ou para a pior inimiga, não recomendo meu ex-marido como companheiro, como um amor para construir um projeto de vida juntos, mas como pai ele é ótimo, ele ama os filhos, tenho certeza que ele cuidará bem de nossos filhos, eu não ousaria retirar das crianças a convivência com o pai ótimo que elas têm.”

Essa fala da minha amiga mexeu profundamente comigo, fiquei dias a perguntar-me se eu mesma seria tão justa e pouco passional, como no caso específico dos motivos dessa separação, e arrisco afirmar que essa amiga é um exemplo típico de exercício de responsabilidade emocional, um termo que uso aqui sem saber se já foi cunhado por outra pessoa ou se tem algum outro significado.

A primeira vez que assisti uma amiga, outra amiga, exercendo a responsabilidade emocional em relação a uma filha, foi no Espírito Santo, em 1998. Sentadas à mesa, ela me ofereceu um bolo recém-saído do forno e avistou o equivalente a R$ 20, acabou contando trivialmente que aquela baixa quantia havia sido deixada pelo pai da filha. Lamentou que ele deixasse tão pouco e tão esporadicamente, explicou que a família e muitos amigos a incitavam a entrar na Justiça.

Calei-me, ela sentou ao meu lado para explicar suas razões mirando-me com aqueles grandes olhos verdes e disse algo mais ou menos assim. “Não é uma questão de direitos para mim, de feminismo, eu entraria na justiça se ele fosse um péssimo pai e se tivesse mesmo o que dar, mas ele chega aqui e levanta a nossa filha pela cintura, sai com ela, leva à praia, cuida, do jeito dele, mas cuida, ama e isso não tem dinheiro que pague, ainda mais um dinheiro que eu sei que ele não tem. A convivência pacífica é o maior investimento e talvez o único que ele pode fazer na vida dela, pelo menos por enquanto e eu não vou transformar a infância da minha filha em um inferno de mãe raivosa e pai ausente por causa disso, até porque o amor dele por ela é tão grande que essa questão financeira pode ser resolvida mais tarde por eles dois”.

Outro caso de responsabilidade emocional que, aliás, já tem um desfecho dos melhores imagináveis refletidos em uma bela moça; feliz e talentosa.

Ao contrário desses dois exemplos e mais um que ouvi ainda ontem – a minha sorte é pessoal de encontrar tantos desses exemplos -, diariamente tenho também notícias de um avanço pelo lado roxo da força.

Rejeições, abandonos, alienação parental, comparações e diferenças crueis na relação entre adultos e crianças próximas, seja por laços genéticos ou ambientais, têm sido justificados sob o argumento esdrúxulo da afinidade. 

Até professores andam desculpabilizando-se de suas incapacidades de desenvolver responsabilidade emocional com esse argumento do grau de afinidade. “Não é que eu faça diferença, mas sempre existe de se ter mais afinidade com um aluno do que com outro”. A mesma frase, cada vez mais proferida em redes de discussão sobre educação, se repete quase idêntica na vida familiar: “Não é que eu goste mais do filho/neto A do que do filho/neto B; é uma questão de afinidade, de necessidade de convivência, das contingências da vida”

Usar a desculpa das afinidades para exercer indiferença, descaso, desatenção e comparação é apenas uma formatação nova para a velha e mofada prática pervertida que perpetua as neuroses familiares que não ousamos prevenir e tratar.

Como vimos nos dois exemplos acima, das minhas adoráveis amigas, das antigas e do para sempre, afinidades ou falta de afinidades podem ser melhor encaixadas, podem ser descobertas e não usadas como arma para o não relacionamento, especialmente quando envolvem crianças com as quais deveríamos conviver de maneira amorosa espontaneamente, com inteligência e sensibilidade, de preferência filtrando as neuroses.

Um ser humano tem muitos conteudos, qualquer criança é um mundo de sentimentos, talentos, habilidades, tendências e ainda por cima está em formação. 

O adulto também tem uma imensa bagagem e obviamente que se ele se identifica com o filho/neto A porque esse filho/neto A tem determinadas características, a conexão com o filho/neto B pode ser desenvolvida em cima de outras características. Ambos só teriam a ganhar emocionalmente ao descobrir possibilidades de relacionamento saudável e afinidades ainda não exploradas. 

Além disso, relacionamentos não necessariamente devem ser feitos só de afinidades, as diferenças são muito bem-vindas e podem ser elos fortes de ligação.

Quando nos refugiamos de uma convivência amorosa em nome de afinidades ou situações, contingências, estamos apenas voltados para nossa própria doença familiar de repetir padrões e refutar aquele que não nos parece tão igual. O neto que perde o convívio com os avós maternos ou paternos depois da separação dos pais, o filho que ousou não seguir a carreira recomendada pelos pais, a filha que escolheu ter filhos adotivos, enfim são inúmeros os exemplos de situações que podem aproximar ou distanciar os adultos das crianças, ainda assim a preguiça emocional não se justifica.

Sair do narcisismo para olhar a beleza de uma criança, para receber e satisfazer a necessidade de afeto e contato de uma criança, está longe de ser um sacrifício.

É claro que para isso é preciso ter aí um software novo instalado no velho hard coração — o software da responsabilidade emocional, esse termo que não sei se inventei ou já foi cunhado por aí.

Cláudia Rodrigues é jornalista e terapeuta reichiana

Postado no blog Sul21 em 23/05/2012

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